Mas o que chama atenção é o relato abaixo, redigido pela Mari Weigert.
(Jornal Zero Hora, 25 de junho de 2011, p. 38)
Vidas que Importam (Mari Weigert)
Saía para o trabalho na manhã da última sexta-feira ouvindo a rádio do principal veículo de notícia da região sul do país. O locutor, um senhor com ideias comprovadamente conservadoras (pesquisa realizada por mim todas as manhãs), quando eu cruzava o portão, informa que uma mulher de nome tal, 41 anos, havia sido, provavelmente atropelada nas imediações da av. Bento Gonçalves. Fiquei mais atenta que o habitual à notícia por se tratar do meu trajeto até o trabalho, concluindo, no entanto, que não precisava me preocupar com o impacto de ver a pessoa, pois como é de praxe, se tivesse que ser socorrida já teria sido até eu chegar ao local, bem como se tivesse, infelizmente, morrido, no mínimo, a pobre mulher estaria coberta.
No entanto, quando eu já me aproximava, cerca de uma sinaleira antes, o repórter que estava no local transmite ao locutor a informação de que agora apurara mais detalhes: tratava-se de uma presa do albergue anexo do presídio feminino Madre Pelletier que havia sido baleada. Os policiais da Brigada Militar, inclusive, haviam tentado reanimá-la, mas não houve como salvar-lhe a vida. Ao devolver à palavra ao radialista, este não teceu um único comentário. Justo ele que tem sempre o discurso punitivista dos altos índices de criminalidade na ponta da língua, na manhã de sexta-feira, calou-se, não esboçou qualquer reação. Ao saber que a vítima do homicídio era uma detenta, passou a entender o ocorrido de outra forma, provavelmente pensando que, pela primeira vez, a "bandidagem que atormenta a capital gaúcha e o país inteiro", estava a seu favor. Agora um criminoso tirava a vida de outro e assim, ao menos, não era o corpo de um homem de bem que no cordão daquela calçada jazia.
Pensava sobre isso quando cruzei a avenida Bento Gonçalves. Ao olhar pela janela, a poucos metros do carro, estava a mulher caída. Os pés na calçada, cruzados um sobre o outro, o resto do corpo na via pública, de bruços. O sangue escorria perto da cabeça. Diferentemente do que eu supunha, portanto, não havia nada cobrindo o corpo, ele se encontrava intacto desde o momento em que tombara, provavelmente. O carro da Brigada estava próximo, e seus agentes demonstravam-se bastante preocupados em organizar o trânsito, afinal, era a hora do cidadão honesto ir trabalhar. A posição em que a mulher estava indicava que nenhuma tentativa de reanimação havia sido realizada, distintamente do que o veículo de comunicação, aquele (de)formador de opinião do povo gaúcho, havia relatado.
Ainda tocada pela imagem, pelo sentimento, pela vida que acabara de acabar, adentro o portão da instituição em que trabalho. E antes que eu tivesse tempo de estacionar e desligar o rádio, o locutor trocara de assunto: comentava em tom sério e bastante incisivo o absurdo que é um ser humano maltratar animais. Mencionava bastante orgulhoso que é defensor da causa, que certa vez chegou mesmo a ir à casa de um cidadão dizer-lhe com todas as letras que precisava cuidar do seu cão, que o pobre bichinho ficara um final de semana inteiro de verão sem água e isso, ah, isso ele jamais poderia tolerar. O senhor radialista, naquela fria manha de sexta-feira, deixou claro que o que tolera são os maus tratos contra o ser humano, desde que o corpo estirado no chão, exposto para quem quiser ver na avenida movimentada, seja o de alguém cuja vida simplesmente não importa.
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