Socióloga da Fundação Joaquim Nabuco e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas de Segurança Pública da Universidade Federal de Pernambuco, Patrícia Bandeira de Melo (foto) acaba de lançar Histórias Que a Mídia Conta: O discurso sobre o crime violento e o trauma cultural do medo. O livro, sua tese de doutorado, é o resultado de uma análise sobre a cobertura policial dos casos que chamam mais atenção e sobre seu efeito perverso: a geração de pânico na população. Um medo dirigido para o improvável, em um público cada dia mais assustado, que passa a tratar a crueldade humana como um traço do seu destino, como uma -característica do povo, do País.
(Fonte: Carta Capital, 27 de julho 2011)
Carta Capital: A cobertura de crimes violentos é diferente em outros países?
Patrícia Bandeira de Melo: Não fiz estudo comparativo, mas li muito e conversei com pesquisadores de fora. A cobertura de crimes bárbaros em outros países não gera nas pessoas a sensação de que aquilo pode acontecer com você a qualquer momento. Não é criada uma expectativa de risco iminente.
CC: Nossa cobertura jornalística transmite essa sensação?
PBM: No Brasil isso é muito forte, a cobertura é intensa, repetida. Temos um exemplo extremo, o caso Eloá (a moça sequestrada e morta pelo ex-namorado em São Paulo). Ali vimos um crime ao vivo, a ação criminosa foi transmitida no momento em que estava ocorrendo, com a intervenção da mídia no processo. A imprensa estava presente e tentou falar diretamente com o criminoso. A imprensa exagerou e tentou psicologizar. É uma prática da mídia, que tenta, por 24 horas, encontrar explicações. Ela quer razões e quer rápido.
CC: Como a mídia vê o crime violento?
PBM: A imprensa quer tudo. Investigar, explicar, dar causa rápida, revelar os porquês. Ela se dá o papel de instituição total, ela acha que tem o poder de buscar respostas para todos os problemas – e logo. O mundo não é assim, as pessoas não funcionam nessa rapidez. Por exemplo, uma pessoa morrer no sinal de trânsito é uma coisa. Uma pessoa morrer no sinal de trânsito, arrastado por um cinto de segurança, como no caso do menino João Hélio, é outra. Devemos dar o fato, é notícia, mas devemos apresentar a -dimensão de -realidade, com nexo de casualidade entre o que aconteceu e o dia a dia comum. Explicar se existem chances de acontecer novamente. Esse retorno deveria ser apresentado e normalmente não é.
CC: O que acontece quando esse tipo de contextualização não é feito?
PBM: As pessoas ficam com medo. Teve gente, na época, que passou a ter medo de colocar o cinto de segurança no filho no banco de trás. Outros tiveram medo de parar no sinal vermelho. Não houve uma abordagem racional, de um profissional neutro. Ninguém disse algo simples como o não planejamento da morte do menino pelos assaltantes. Não estou querendo diminuir a tragédia. Nada deve ser pior do que perder o filho naquelas circunstâncias e isso não muda a ocorrência. A morte do menino foi um acidente no assalto. E os assaltantes foram cruéis. Eles tiveram a opção de parar o carro e não pararam. Mas ninguém deu a dimensão de que o assalto não previa o assassinato do menino e isso tem relevância. Os textos foram emocionais e deram a impressão de que tudo foi premeditado.
CC: Qual a consequência dessa construção?
PBM: Ela transforma os assaltantes em monstros. Ao se criar a demonização dos criminosos, entramos para uma sociedade dividida entre justos e injustos, entre bons e maus. Há passagens na imprensa que dizem “João Hélio não morreu em vão”, ou “João Hélio é o anjo que morreu para salvar a todos nós, brasileiros”. Ou seja, um processo de redenção para a sociedade toda. Ao jogarmos o crime para o âmbito do divino, sobra a pergunta: quem pode julgar os demônios? Não existe política pública para isso. O que surge como mobilização política em casos como esses? Passeatas, missas, todo mundo vestindo branco. Você consegue imaginar a redução da criminalidade porque 200 pessoas saíram juntas a pedir paz?
CC: O erro é o exagero?
PBM: Não se deve dar apenas a notícia, é preciso dar a dimensão da raridade. Por exemplo, o ocorrido na escola em Realengo, no Rio de Janeiro. Ali tivemos uma notícia de interesse para a sociedade. O problema é que nos dias seguintes ao episódio a segurança nas escolas se tornou a pauta. Cria-se uma sensação de que vai acontecer de novo, como se fosse epidêmico. Todo mundo começou a querer saber se a escola do seu filho era segura.
CC: Os exageros acontecem em outros setores do jornalismo?
PBM: Sim. Acontece a mesma coisa na saúde pública, na economia, na política. Estamos sempre com a sensação de que alguma coisa vai acontecer, do perigo iminente. A cobertura da gripe A H1N1 é um exemplo. Muitas pessoas deixaram de viajar com medo da epidemia mundial. Em 2008, o presidente Lula falou que a crise econômica seria uma marolinha e foi muito criticado. Ocorre que o Brasil não sentiu os efeitos da crise como os Estados Unidos e a Europa.
CC: Os crimes violentos fazem parte da nossa história?
PBM: Sim, temos uma sociedade marcada pelo crime. Nosso passado é uma história de criminosos. Começa com a escravidão, depois o cangaço, a malandragem dos anos 1950 e depois a ditadura. Tudo é romantizado. Com a escravidão, dizemos que somos todos iguais, somos miscigenados, índios, brancos e negros. O cangaço é romantizado até hoje. São histórias de Robin Hood, de injustiçados que se rebelaram. A malandragem é musical no Brasil. É aquele cara de terno branco, sapato bicolor. Na verdade é o cara que não queria trabalhar e começa a assaltar quem passa na rua. Não vamos romantizar a ditadura. Aí seria demais. Mas vem o discurso do esquecimento, aquela conversa de que a gente precisa apagar isso. É um problema grave. Quando você apaga da história processos traumáticos, você retira o sentido do trauma. O sentido dá a dimensão de que aquele trauma não pode ser repetido.
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